quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Epílogo

Andava pela rua distraído, tentando encontrar aquela música nova do Arctic Monkeys no Ipod. O volume estava tão alto que não conseguia ouvir nem os próprios pensamentos e era exatamente essa a intenção. Finalmente, encontrei. Abri um sorriso.
BAM!
Fui abrindo os olhos aos poucos, o som da rua tinha me acordado, o Ipod estava no chão.
- Puta que o pariu, o que aconteceu?
Olhei em volta tentando entender qualquer coisa.
- O que a Ju tá fazendo no chão? O que eu tô fazendo no chão? Ah tá. Não, não, não. Como eu caí desse jeito? O que ela tá fazendo aqui? Preciso maneirar nesse som.
Dei uma olhada no Ipod pra ver se estava tudo bem, demorei um pouco para me tocar que a Ju precisava de ajuda e ainda estava desmaiada, ela sempre se virou tão bem sozinha que esqueci que às vezes todo mundo precisa de ajuda. Ainda meio tonto fui me arrastando até ela.
- Ju. Ju!
Ela foi abrindo os olhos aos poucos, estranhando a minha presença.
- Fe? Aaai!
- Ju, você tá bem?
- Parece que minha cabeça vai explodir. O que você tá fazendo aqui?
- Acho que a gente trombou de cabeça.
- Nossa, foi com força hein. Sabe, nunca falei, mas sempre achei sua cabeça meio grande demais mesmo. – disse ela enquanto se sentava, encostando-se ao muro bem devagar.
Rímos baixinho. Ela sempre falava umas coisas assim, umas bobeiras que ela nem queria dizer, depois de um tempo começou a achar que era pra chamar atenção, mas sabe, quando eu ficava inseguro, tinha algumas coisas que magoavam, mas fingia que não. Sei lá, só não queria parecer bobo, mas dessa vez achei graça. Deve ser o desencantamento. Sempre que passava um tempo que a gente não se via, achava graça em tudo o que ela falava.
- Fe?
- Oi, oi – falou um pouco distraído.
- Meu nariz tá sangrando?
Nossa! Ela precisava deitar, muito sangue. Ela deitou no meu colo. Estava tão quietinha, tão frágil, nem reparou quando comecei a passar os dedos entre os cabelos dela. Sem aviso, ela se levantou.
- Ei, espera, não vou deixar você ir sozinha.
- Então vem, tem pronto atendimento aqui perto.
- Parou de sangrar?
- Não sei, tô meio tonta.
Corri um pouco para alcançá-la. Como ela era infantil às vezes, precisava andar tão rápido? Eu estava muito velho para essas coisas. Espera, ia encontrar um amigo no café. Mandei algumas mensagens pelo celular para avisar. Não tinha contado para quase ninguém o que aconteceu um tempo atrás. De algum jeito eu entendia o que ela fez. Eu deveria ter falado alguma coisa, só não esperava que ela daria um ponto final em tudo daquele jeito, mas ela sempre foi meio dramática. Ainda doía. Finalmente, o hospital, estava ficando constrangedor esse silêncio.
Estava passando a novela na TV. Odiava admitir que gostava, mas parecia que só com a TV ligada na sala que conseguia ficar com a minha mãe por mais de meia hora. É um pouco triste, mas a família sempre foi meio sem jeito quando era pra demonstrar sentimentos. Então concordava com esse silencio a frente de uma novela qualquer. Ela se sentou ao meu lado, não passou cinco minutos e colocou a mão em minha perna. Por que ela se preocupava tanto com essas coisas? Parei de mexer a perna, voltei a olhar para TV e quando percebi, o rosto dela estava bem pertinho do meu.
- Cara, você não tá sentindo nada? Parece que tiraram meu cérebro, chacoalharam e enfiaram de volta de ponta cabeça.
- Meu, tô bem.
- Tem uma marquinha vermelha na sua testa.
- Sério? Mas não tá doendo.
- Mas é muito cabeção mesmo – disse enquanto pegou o celular e ligou a câmera frontal.
- Não é sua senha?
Ela conferiu e era a próxima. Tentei começar qualquer conversa. Não sabia como ela estava, o que tinha acontecido nesse tempo. Ela só deu algumas respostas rasas  até que chegou a senha e ela me pediu para ir junto ao consultório.
- O que você vai falar que aconteceu?
Ela deu uma risadinha quase travessa.
- A verdade, ué.
O médico parecia cansado. Eles começaram a conversar enquanto eu só ficava no meu papel de acompanhante.
- Então, eu bati a cabeça, eu bati a cabeça hmm em um poste.
- Nossa! Agora ficou bem melhor! – falei sem pensar.
- Shhhh
- E como está se sentindo? – disse o médico me ignorando.
- Fiquei um pouco tonta e saiu sangue do meu nariz, mas agora tudo passou.
- Ok, senta aqui na maca, vou dar uma olhada.
Sempre achei meio estranhos esses objetos que os médicos gostam de ter nos consultórios. Esse computador antigo que era tão barulhento que parecia que ia voar a qualquer momento. Alguns quadros de mau gosto e aquelas plantas enormes que não dava para saber se eram de plástico ou não. Estava sendo um pouco chato, aqui era o pronto atendimento, esse senhor não deve ter escolhido nada daqui.
A Ju se levantou. Olhei para ela com cara de indecisão, tentando entender se ela estava satisfeita ou não.
- Acho que não foi nada demais mesmo, exagerei.
- Mas não tava saindo sangue do seu nariz?
- Bom, foi só o impacto, vamos.
- Tudo bem.
- E aí? O que você vai fazer?
- Encontrar uns amigos no café, a gente tá com aquele projeto da loja de estamparias, comentei com você né?
- Sim.
- Então, o pessoal tá bem animado, tô cheio de ideias, você chegou a ver aquela minha última ilustra?
- Onde?
- Postei no face, não viu?
- Não, não tô entrando muito.
- Eu te mando depois.
Ela só sorriu de volta, um sorriso meio triste, daqueles que mexe só metade da boca. Não entendia porque ela sempre parecia triste. Será que ela era sempre triste quando estava com ele? Ou ela só era triste mesmo?
- E você?
- Vou para casa, tava só dando uma volta.
Ele sempre sentia que ela não falava tudo, que só estava resumindo as coisas para não precisar contar nada pra ele. Qual era o problema em falar? Parecia que ela estava sempre se escondendo, desconfiada do mundo, ela não precisava desconfiar dele. Apesar de tudo, o tempo realmente acalma as coisas. Ele nunca faria nada que magoasse ela, pelo menos não de propósito. Reparou como ela estava linda, o sol batia em seu rosto, os olhos brilhando, uma marquinha vermelha da batida se mostrava logo em cima do nariz e aquela boca.
- Ei!
- Oi, oi.
- Onde você tava?
- Só pensando.
- Hm, tá bom. Olha, tô indo pra esse lado.
- Ahn, vou para o outro.
- Então tchau.
- Tchau.
Fiquei parado, só olhando enquanto ela beijava minha bochecha. Quando percebi, estava beijando ela, não sei bem como. Ela se afastou, deu de novo aquele sorriso triste e virou de costas. Fiquei olhando por pouco tempo ela dar os rápidos passos e segui meu rumo. Antes de virar a esquina olhei para trás. Ela não estava olhando de volta.


… … …


Estava respondendo um whatsapp rapidinho. Sempre penso que vão me roubar quando ando com o celular assim. Sabe a gangue da bicicleta? Minha mãe sempre fala pra eu ter cuidado. Estava procurando alguém para sair à noite, me sentia um pouco sem amigos. Parece que ninguém quer ficar em volta de alguém tão perdida, mas no fundo sabia que era coisa da minha cabeça, a falta do que fazer fazia a necessidade por outras pessoas aumentar muito. Ela queria ser determinada e dedicada, igual essas pessoas de sucesso, mas é tão difícil, como saber o que lhe deixa feliz?
BAM!
Escutei alguma coisa distante, que raios que aconteceu? Ai, parecia o chão, o chão aconteceu. Minha cabeça doía. Meus pais sempre falam para eu ver um neurologista, deve ser algum déficit de atenção, eles dizem, mas só parece que nada realmente chama a atenção. O som, pareceu mais alto.
Abri os olhos com preguiça, até que estava gostando desse breu. Parecia que o Fe estava lá, aquele menino que saí há um tempo. O que ele fazia aqui? Pronto, agora até ilusões eu tinha, preciso de um neurologista mesmo. Encarava ele sem entender nada. Balbuciei alguma coisa para ele. Aquilo nem era real.
- Acho que a gente trombou de cabeça.
Como assim? Isso foi real? Muita distração para duas pessoas só, que bizarro. Sem motivo aparente me senti confortável de ele estar lá de verdade. Soltei alguma piada que não lembro. Ouvi uma risada baixinha, tentei me encostar em algum lugar. Ás vezes ele ria de tudo que eu falava, nem deve ter tido graça. Com o tempo, ele não ria de mais nada. Isso me deixava nervosa, comecei a falar qualquer coisa mal pensada só para preencher o vazio do silencio, parecia que aquela era hora de falar, sempre faço isso quando fico nervosa, um amigo já tinha me avisado. Mas lembro que quando queria ficar quietinha, só olhando pra ele ou vendo um filme, ele não parava de falar. Que cara chato. Parecia que o timing estava sempre todo errado.
Alguma coisa estava escorrendo do meu nariz. Perguntei pro Fe o que era. Ele olhou assustado quando reparou.
- Nossa! Deita aqui, fica com a cabeça pra cima.
Que alívio era ficar com a cabeça pra cima, estava tão confortável. Podia até fechar os olhos. Espera! Não. Ele estava mexendo no meu cabelo. Pareceu errado. Ele some do nada e agora quer fazer cafuné? Quando a gente via filme ele não fazia isso, ficava é falando sem parar. Levantou o mais rápido que conseguiu.
 - Cara, não tô bem. Acho que vou passar no hospital. – disse já em pé, querendo sair dali.
Ele não me deixou ir sozinha. Bom, acho que é melhor mesmo. Fomos andando. Inconscientemente, tentava ditar um passo apressado. Comecei várias frases em minha cabeça, mas não conseguia puxar assunto. Tanta coisa mal explicada que não sabia se era sábio tentar começar. Olhei para ele mexendo no celular, pensei que ele não estava se importando muito, só queria cumprir o protocolo de moço cavalheiro. Deixa para lá, melhor assim mesmo, mas o silencio ainda estava constrangedor. Ufa, depois da esquina já é o hospital.
Ele nem me esperou e foi se sentar na recepção. Peguei a senha e fui para onde ele estava vidrado na televisão. Puta que o pariu, como irrita essa perna dele. Que saco! Não para de mexer. Não ia aguentar, segurei enquanto pude, o ponteiro do relógio na parede branca se se arrastava, alguma pessoas levantavam apressadas a medida que um apito mudava a senha do visor, passou uma eternidade. Coloquei a mão na perna dele. Ele parou, mas sabia que não ia demorar muito para começar de novo. Nossa, ele estava estranho, olhando para a TV sem falar nada, era desconfortável. Cheguei com o rosto bem pertinho do dele e tentei tirá-lo do transe começando um assunto, nada pior que esse silêncio estranho de quem não é cúmplice.
Observando uma marquinha vermelha bem discreta na testa dele, lembrei que nem sabia da minha aparência, devia estar um bagaço. Tentei enxergar pela câmera do celular. É, não está tão ruim assim.
- Não é sua senha?
Conferi no papel meio amassado, era a próxima.
- Acho que não vai demorar muito, tem pouca gente.
- Como você tá?
- Tudo bem Fe, tudo indo e você?
- Tô bem.
- E o trabalho, tá legal?
- Sim, bastante coisa. Amanhã vou ter... É sua senha.
- Ah! Vamos comigo?
Ele deu um sorrisinho e se levantou. Não sabia porque ele fazia essas perguntas que só eram adequadas para um estranho no elevador ou na recepção de um dentista. O médico parecia tranquilo e um pouco cansado. Expliquei rapidamente o que aconteceu, tentando não dar muitos detalhes. O Fe fez alguma piada que não precisava.
O médico apertou meu nariz com força e a testa, nada estava doendo. Parecia que estava tudo bem. É impressionante como tudo acontece e no momento de mostrar para outra pessoa, tudo desacontece magicamente e eu fico com cara de tonta. Isso que eu ganho por ser dramática demais.
- Parece que não há nenhum trauma, foi só o impacto, o susto. Se a tontura retornar, volte ao consultório.
- Só isso?
- Por hoje sim, boa tarde.
- Boa tarde.
O Felipe me olhou para com uma expressão estranha. Nem tentei entender, sabia que ia ficar tudo bem, foi uma preocupação à toa. Como quase tudo que me leva ao médico. Também não queria deixar a situação pior com alguma pergunta pessoal que eu sabia, ia levar a algum lugar doido e ele ia ver tudo como cobrança. Continuei com a conversa de elevador de antes da consulta.
- E aí? O que você vai fazer?
- Encontrar uns amigos no café, a gente tá com aquele projeto da loja de estamparias, comentei com você né?
- Sim.
- Então, o pessoal tá bem animado, tô cheio de ideias, você chegou a ver aquela minha última ilustra?
- Onde?
- Postei no face, não viu?
- Não, não tô entrando muito.
Não entendia porque ele sempre perguntava coisas assim. Se ele não mostrou, não vi, simples assim.
- Eu te mando depois.
Ele nunca vai entender como me sentia desimportante. É claro que não sei nada da vida dele, ele não fala, mas quando a gente se encontra, ele comenta tudo como tivéssemos nos visto no dia anterior. Tem horas que dói quando ele conversa desse jeito, do jeito que ele conversaria com qualquer pessoa que ele encontra na fila da padaria. Fazia mais ou menos meio ano que a gente não se via.
Não gostava de contar coisas da vida para ele, não fazia sentido. Pra que contar todos os sonhos, esperanças e planos se depois ele não vai se preocupar em estar lá para saber como tudo acaba. Pensou que estava sendo dramática de novo. Ele só perguntou onde eu estava indo, foi meio casual demais. Ás vezes estava não me abrindo sobre nada para tentar chamar atenção, quem sabe assim ele queira saber o que acontece de verdade. O que aconteceu entre eles, mesmo? Não lembrava direito, sabia que tinha a ver com o momento depois daquele lanche, mas não via razão para muita coisa a respeito dele. Também não fui das mais simpáticas depois disso. Achei que ele nunca ia querer trombar comigo depois da loucura que aconteceu. Não tenho certeza ainda se me arrependo. Provavelmente não. Ele parecia em outro mundo, olhando com cara de bobo para mim.
- Ei!
- Oi, oi.
- Onde você tava?
- Só pensando.
- Hm, tá bom. Olha, tô indo pra esse lado.
- Ahn, vou para o outro.
- Então tchau.
- Tchau.
Ele ficou parado como se estivesse assustado, beijei sua bochecha para me despedir. No único segundo em que me separava de seu rosto, ele me beijou. Correspondi em um impulso que durou pouco tempo. Fitei ele tentando entender o que tinha acontecido. Desisti e segui meu caminho. Depois de poucos passos apressados, olhei para trás e continuei a caminhar. Ele não estava olhando de volta.