Andava pela rua
distraído, tentando encontrar aquela música nova do Arctic Monkeys no Ipod. O
volume estava tão alto que não conseguia ouvir nem os próprios pensamentos e
era exatamente essa a intenção. Finalmente, encontrei. Abri um sorriso.
BAM!
Fui abrindo os
olhos aos poucos, o som da rua tinha me acordado, o Ipod estava no chão.
- Puta que o
pariu, o que aconteceu?
Olhei em volta
tentando entender qualquer coisa.
- O que a Ju tá
fazendo no chão? O que eu tô fazendo no chão? Ah tá. Não, não, não. Como eu caí
desse jeito? O que ela tá fazendo aqui? Preciso maneirar nesse som.
Dei uma olhada
no Ipod pra ver se estava tudo bem, demorei um pouco para me tocar que a Ju
precisava de ajuda e ainda estava desmaiada, ela sempre se virou tão bem
sozinha que esqueci que às vezes todo mundo precisa de ajuda. Ainda meio tonto
fui me arrastando até ela.
- Ju. Ju!
Ela foi abrindo
os olhos aos poucos, estranhando a minha presença.
- Fe? Aaai!
- Ju, você tá bem?
- Parece que
minha cabeça vai explodir. O que você tá fazendo aqui?
- Acho que a
gente trombou de cabeça.
- Nossa, foi com
força hein. Sabe, nunca falei, mas sempre achei sua cabeça meio grande demais
mesmo. – disse ela enquanto se sentava, encostando-se ao muro bem devagar.
Rímos baixinho.
Ela sempre falava umas coisas assim, umas bobeiras que ela nem queria dizer,
depois de um tempo começou a achar que era pra chamar atenção, mas sabe, quando
eu ficava inseguro, tinha algumas coisas que magoavam, mas fingia que não. Sei
lá, só não queria parecer bobo, mas dessa vez achei graça. Deve ser o
desencantamento. Sempre que passava um tempo que a gente não se via, achava
graça em tudo o que ela falava.
- Fe?
- Oi, oi – falou
um pouco distraído.
- Meu nariz tá sangrando?
Nossa! Ela
precisava deitar, muito sangue. Ela deitou no meu colo. Estava tão quietinha,
tão frágil, nem reparou quando comecei a passar os dedos entre os cabelos dela.
Sem aviso, ela se levantou.
- Ei, espera,
não vou deixar você ir sozinha.
- Então vem, tem
pronto atendimento aqui perto.
- Parou de
sangrar?
- Não sei, tô
meio tonta.
Corri um pouco
para alcançá-la. Como ela era infantil às vezes, precisava andar tão rápido? Eu
estava muito velho para essas coisas. Espera, ia encontrar um amigo no café.
Mandei algumas mensagens pelo celular para avisar. Não tinha contado para quase
ninguém o que aconteceu um tempo atrás. De algum jeito eu entendia o que ela
fez. Eu deveria ter falado alguma coisa, só não esperava que ela daria um ponto
final em tudo daquele jeito, mas ela sempre foi meio dramática. Ainda doía.
Finalmente, o hospital, estava ficando constrangedor esse silêncio.
Estava passando
a novela na TV. Odiava admitir que gostava, mas parecia que só com a TV ligada
na sala que conseguia ficar com a minha mãe por mais de meia hora. É um pouco
triste, mas a família sempre foi meio sem jeito quando era pra demonstrar
sentimentos. Então concordava com esse silencio a frente de uma novela
qualquer. Ela se sentou ao meu lado, não passou cinco minutos e colocou a mão
em minha perna. Por que ela se preocupava tanto com essas coisas? Parei de mexer
a perna, voltei a olhar para TV e quando percebi, o rosto dela estava bem
pertinho do meu.
- Cara, você não
tá sentindo nada? Parece que tiraram meu cérebro, chacoalharam e enfiaram de
volta de ponta cabeça.
- Meu, tô bem.
- Tem uma
marquinha vermelha na sua testa.
- Sério? Mas não
tá doendo.
- Mas é muito
cabeção mesmo – disse enquanto pegou o celular e ligou a câmera frontal.
- Não é sua
senha?
Ela conferiu e
era a próxima. Tentei começar qualquer conversa. Não sabia como ela estava, o
que tinha acontecido nesse tempo. Ela só deu algumas respostas rasas até que chegou a senha e ela me pediu para ir
junto ao consultório.
- O que você vai
falar que aconteceu?
Ela deu uma
risadinha quase travessa.
- A verdade, ué.
O médico parecia
cansado. Eles começaram a conversar enquanto eu só ficava no meu papel de
acompanhante.
- Então, eu bati
a cabeça, eu bati a cabeça hmm em um poste.
- Nossa! Agora
ficou bem melhor! – falei sem pensar.
- Shhhh
- E como está se
sentindo? – disse o médico me ignorando.
- Fiquei um
pouco tonta e saiu sangue do meu nariz, mas agora tudo passou.
- Ok, senta aqui
na maca, vou dar uma olhada.
Sempre achei
meio estranhos esses objetos que os médicos gostam de ter nos consultórios.
Esse computador antigo que era tão barulhento que parecia que ia voar a
qualquer momento. Alguns quadros de mau gosto e aquelas plantas enormes que não
dava para saber se eram de plástico ou não. Estava sendo um pouco chato, aqui
era o pronto atendimento, esse senhor não deve ter escolhido nada daqui.
A Ju se levantou.
Olhei para ela com cara de indecisão, tentando entender se ela estava
satisfeita ou não.
- Acho que não
foi nada demais mesmo, exagerei.
- Mas não tava
saindo sangue do seu nariz?
- Bom, foi só o
impacto, vamos.
- Tudo bem.
- E aí? O que
você vai fazer?
- Encontrar uns
amigos no café, a gente tá com aquele projeto da loja de estamparias, comentei
com você né?
- Sim.
- Então, o
pessoal tá bem animado, tô cheio de ideias, você chegou a ver aquela minha
última ilustra?
- Onde?
- Postei no
face, não viu?
- Não, não tô
entrando muito.
- Eu te mando
depois.
Ela só sorriu de
volta, um sorriso meio triste, daqueles que mexe só metade da boca. Não
entendia porque ela sempre parecia triste. Será que ela era sempre triste
quando estava com ele? Ou ela só era triste mesmo?
- E você?
- Vou para casa,
tava só dando uma volta.
Ele sempre
sentia que ela não falava tudo, que só estava resumindo as coisas para não
precisar contar nada pra ele. Qual era o problema em falar? Parecia que ela
estava sempre se escondendo, desconfiada do mundo, ela não precisava desconfiar
dele. Apesar de tudo, o tempo realmente acalma as coisas. Ele nunca faria nada
que magoasse ela, pelo menos não de propósito. Reparou como ela estava linda, o
sol batia em seu rosto, os olhos brilhando, uma marquinha vermelha da batida se
mostrava logo em cima do nariz e aquela boca.
- Ei!
- Oi, oi.
- Onde você
tava?
- Só pensando.
- Hm, tá bom.
Olha, tô indo pra esse lado.
- Ahn, vou para
o outro.
- Então tchau.
- Tchau.
Fiquei parado,
só olhando enquanto ela beijava minha bochecha. Quando percebi, estava beijando
ela, não sei bem como. Ela se afastou, deu de novo aquele sorriso triste e
virou de costas. Fiquei olhando por pouco tempo ela dar os rápidos passos e
segui meu rumo. Antes de virar a esquina olhei para trás. Ela não estava
olhando de volta.
… … …
Estava
respondendo um whatsapp rapidinho. Sempre penso que vão me roubar quando ando
com o celular assim. Sabe a gangue da bicicleta? Minha mãe sempre fala pra eu
ter cuidado. Estava procurando alguém para sair à noite, me sentia um pouco sem
amigos. Parece que ninguém quer ficar em volta de alguém tão perdida, mas no
fundo sabia que era coisa da minha cabeça, a falta do que fazer fazia a
necessidade por outras pessoas aumentar muito. Ela queria ser determinada e
dedicada, igual essas pessoas de sucesso, mas é tão difícil, como saber o que
lhe deixa feliz?
BAM!
Escutei alguma
coisa distante, que raios que aconteceu? Ai, parecia o chão, o chão aconteceu.
Minha cabeça doía. Meus pais sempre falam para eu ver um neurologista, deve ser
algum déficit de atenção, eles dizem, mas só parece que nada realmente chama a
atenção. O som, pareceu mais alto.
Abri os olhos
com preguiça, até que estava gostando desse breu. Parecia que o Fe estava lá,
aquele menino que saí há um tempo. O que ele fazia aqui? Pronto, agora até
ilusões eu tinha, preciso de um neurologista mesmo. Encarava ele sem entender
nada. Balbuciei alguma coisa para ele. Aquilo nem era real.
- Acho que a
gente trombou de cabeça.
Como assim? Isso
foi real? Muita distração para duas pessoas só, que bizarro. Sem motivo
aparente me senti confortável de ele estar lá de verdade. Soltei alguma piada
que não lembro. Ouvi uma risada baixinha, tentei me encostar em algum lugar. Ás
vezes ele ria de tudo que eu falava, nem deve ter tido graça. Com o tempo, ele
não ria de mais nada. Isso me deixava nervosa, comecei a falar qualquer coisa
mal pensada só para preencher o vazio do silencio, parecia que aquela era hora
de falar, sempre faço isso quando fico nervosa, um amigo já tinha me avisado.
Mas lembro que quando queria ficar quietinha, só olhando pra ele ou vendo um
filme, ele não parava de falar. Que cara chato. Parecia que o timing estava
sempre todo errado.
Alguma coisa
estava escorrendo do meu nariz. Perguntei pro Fe o que era. Ele olhou assustado
quando reparou.
- Nossa! Deita
aqui, fica com a cabeça pra cima.
Que alívio era
ficar com a cabeça pra cima, estava tão confortável. Podia até fechar os olhos.
Espera! Não. Ele estava mexendo no meu cabelo. Pareceu errado. Ele some do nada
e agora quer fazer cafuné? Quando a gente via filme ele não fazia isso, ficava
é falando sem parar. Levantou o mais rápido que conseguiu.
- Cara, não tô bem. Acho que vou passar no
hospital. – disse já em pé, querendo sair dali.
Ele não me
deixou ir sozinha. Bom, acho que é melhor mesmo. Fomos andando.
Inconscientemente, tentava ditar um passo apressado. Comecei várias frases em
minha cabeça, mas não conseguia puxar assunto. Tanta coisa mal explicada que
não sabia se era sábio tentar começar. Olhei para ele mexendo no celular,
pensei que ele não estava se importando muito, só queria cumprir o protocolo de
moço cavalheiro. Deixa para lá, melhor assim mesmo, mas o silencio ainda estava
constrangedor. Ufa, depois da esquina já é o hospital.
Ele nem me
esperou e foi se sentar na recepção. Peguei a senha e fui para onde ele estava
vidrado na televisão. Puta que o pariu, como irrita essa perna dele. Que saco!
Não para de mexer. Não ia aguentar, segurei enquanto pude, o ponteiro do
relógio na parede branca se se arrastava, alguma pessoas levantavam apressadas
a medida que um apito mudava a senha do visor, passou uma eternidade. Coloquei
a mão na perna dele. Ele parou, mas sabia que não ia demorar muito para começar
de novo. Nossa, ele estava estranho, olhando para a TV sem falar nada, era
desconfortável. Cheguei com o rosto bem pertinho do dele e tentei tirá-lo do
transe começando um assunto, nada pior que esse silêncio estranho de quem não é
cúmplice.
Observando uma
marquinha vermelha bem discreta na testa dele, lembrei que nem sabia da minha
aparência, devia estar um bagaço. Tentei enxergar pela câmera do celular. É,
não está tão ruim assim.
- Não é sua
senha?
Conferi no papel
meio amassado, era a próxima.
- Acho que não
vai demorar muito, tem pouca gente.
- Como você tá?
- Tudo bem Fe,
tudo indo e você?
- Tô bem.
- E o trabalho,
tá legal?
- Sim, bastante
coisa. Amanhã vou ter... É sua senha.
- Ah! Vamos
comigo?
Ele deu um
sorrisinho e se levantou. Não sabia porque ele fazia essas perguntas que só
eram adequadas para um estranho no elevador ou na recepção de um dentista. O
médico parecia tranquilo e um pouco cansado. Expliquei rapidamente o que
aconteceu, tentando não dar muitos detalhes. O Fe fez alguma piada que não
precisava.
O médico apertou
meu nariz com força e a testa, nada estava doendo. Parecia que estava tudo bem.
É impressionante como tudo acontece e no momento de mostrar para outra pessoa,
tudo desacontece magicamente e eu fico com cara de tonta. Isso que eu ganho por
ser dramática demais.
- Parece que não
há nenhum trauma, foi só o impacto, o susto. Se a tontura retornar, volte ao
consultório.
- Só isso?
- Por hoje sim,
boa tarde.
- Boa tarde.
O Felipe me
olhou para com uma expressão estranha. Nem tentei entender, sabia que ia ficar
tudo bem, foi uma preocupação à toa. Como quase tudo que me leva ao médico.
Também não queria deixar a situação pior com alguma pergunta pessoal que eu
sabia, ia levar a algum lugar doido e ele ia ver tudo como cobrança. Continuei
com a conversa de elevador de antes da consulta.
- E aí? O que
você vai fazer?
- Encontrar uns
amigos no café, a gente tá com aquele projeto da loja de estamparias, comentei
com você né?
- Sim.
- Então, o
pessoal tá bem animado, tô cheio de ideias, você chegou a ver aquela minha
última ilustra?
- Onde?
- Postei no
face, não viu?
- Não, não tô
entrando muito.
Não entendia
porque ele sempre perguntava coisas assim. Se ele não mostrou, não vi, simples
assim.
- Eu te mando
depois.
Ele nunca vai
entender como me sentia desimportante. É claro que não sei nada da vida dele,
ele não fala, mas quando a gente se encontra, ele comenta tudo como tivéssemos
nos visto no dia anterior. Tem horas que dói quando ele conversa desse jeito,
do jeito que ele conversaria com qualquer pessoa que ele encontra na fila da
padaria. Fazia mais ou menos meio ano que a gente não se via.
Não gostava de
contar coisas da vida para ele, não fazia sentido. Pra que contar todos os
sonhos, esperanças e planos se depois ele não vai se preocupar em estar lá para
saber como tudo acaba. Pensou que estava sendo dramática de novo. Ele só
perguntou onde eu estava indo, foi meio casual demais. Ás vezes estava não me
abrindo sobre nada para tentar chamar atenção, quem sabe assim ele queira saber
o que acontece de verdade. O que aconteceu entre eles, mesmo? Não lembrava
direito, sabia que tinha a ver com o momento depois daquele lanche, mas não via
razão para muita coisa a respeito dele. Também não fui das mais simpáticas
depois disso. Achei que ele nunca ia querer trombar comigo depois da loucura
que aconteceu. Não tenho certeza ainda se me arrependo. Provavelmente não. Ele
parecia em outro mundo, olhando com cara de bobo para mim.
- Ei!
- Oi, oi.
- Onde você
tava?
- Só pensando.
- Hm, tá bom.
Olha, tô indo pra esse lado.
- Ahn, vou para
o outro.
- Então tchau.
- Tchau.
Ele ficou parado
como se estivesse assustado, beijei sua bochecha para me despedir. No único
segundo em que me separava de seu rosto, ele me beijou. Correspondi em um
impulso que durou pouco tempo. Fitei ele tentando entender o que tinha
acontecido. Desisti e segui meu caminho. Depois de poucos passos apressados,
olhei para trás e continuei a caminhar. Ele não estava olhando de volta.